Não quero ser espantalho
«Porque não gostam os pássaros de mim,
se os pássaros são a coisa de que eu mais gosto na vida?» -
lamentava-se, choroso, o espantalho Firmino, vendo bandos de pardais,
tentilhões e pintassilgos avoar muito distantes, a caminho de terras quentes.
Tinham-no colocado no meio de uma
grande seara para afugentar a passarada. Estava ali de pé firme, com um ar
muito triste, roupas esfarrapadas e lágrimas secas ao canto dos olhos
pequeninos.
Quando chegava a Primavera e os pássaros
chegavam de muito longe, com as suas penas coloridas e chilreios alegres,
tentava acenar-lhes com as mãos de pano, mas não conseguia fazer sequer um movimento
porque estava preso a grossas estacas de madeira.
Por mais que tentasse, por maiores
que fossem os seus esforços, não conseguia deixar de assustar os pássaros. Gostava de ser amigo deles, de os
ajudar, de os abrigar, cansados da longa viagem, debaixo dos seus
grandes braços de pano, madeira e arame.
O dono das terras queria-o ali, carrancudo e
ameaçador, para evitar que os pássaros estragassem as culturas. Mas
Firmino, embora compreendesse o que se esperava dele, não conseguia
estar de acordo. Não podiam fazer dele um espantalho mau à força.
Ele gostava de flores, de rios de água azul, do riso das crianças, de
estrelas, de fios de luar e palavras doces.
Ano após ano chegavam bandos de
pássaros de muito longe, mas com nenhum conseguiu fazer amizade.
Mal o viam lá de cima mudavam de rota.
Firmino ainda se tentou embelezar.
Encheu de lindas papoilas vermelhas o
grande chapéu preto, sujo e esburacado. Mas nem assim conseguiu melhores
resultados.
Que podia ele fazer numa situação
daquelas? Fugir? Deixar de ser espantalho? Explicar aos pássaros que não
queria nem podia fazer-lhes mal? Foram ideias que teve, mas nenhuma podia
tornar-se realidade, porque cada vez se sentia mais enterrado no chão mole da
seara, incapaz de se mexer, de fazer um gesto sequer.
Ia já adiantada a primavera, quando
viu desenhar-se no grande céu azul um bando de pássaros coloridos.
Foi então que tudo se tornou cinzento
e frio e abril, de súbito, se transformou num dezembro de tempestade.
Era a primeira vez que via uma coisa assim.
Empurrados pela forte ventania, os
pássaros afastaram-se da rota e foram cada um para seu lado, muito aflitos.
Alguns caíram exaustos no meio da seara.
Só lhes restava um caminho e foi esse
precisamente que escolheram: num esforço final juntaram-se todos e poisaram
no chapéu e nos braços de Firmino que, feliz, os protegeu para evitar que fossem
arrastados pela tempestade.
Enfiou uns debaixo do casaco, outros
debaixo do chapéu, outros ainda dentro das mangas largas e cheias de palha
macia.
Quando o temporal amainou, os pássaros
agradeceram-lhe e prepararam-se para seguir de novo a sua rota. A rota
tranquila da primavera.
“Levem-me convosco. Porque eu gosto
muito de pássaros e estou farto de ser espantalho” – pediu Firmino, cheio de
timidez. Ainda não tinha acabado de falar e já os pássaros o elevavam no ar,
a grande altura.
Tão alto que nunca mais ninguém o viu.
E agora, sempre que chega o mês de
abril e as árvores se cobrem de folhas muito verdes e os campos de erva
fresca e macia, Firmino voa alegre sobre as searas, suspenso nos bicos dos
seus maiores amigos.»
José Jorge Letria,
in
“Histórias do Arco-Íris”, pp.
24-27.Lisboa: Livros Horizonte, 1983.
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Fernando Pessoa
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