Entrevista efetuada a Alice Vieira por Ana Teresa Ferreira, em que esta escritora considera que os livros foram fundamentais na sua "infância complicada" e deve-lhes todos os bons momentos, porque através deles, aprendeu a viver, a vencer os medos, e a ganhar as suas próprias forças.
“A leitura é um prazer enorme.”
Alice Vieira…
terra a terra
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A senhora das estórias gosta de ter os pés em terra. Natural de Lisboa, […] Alice Vieira é uma
das mais conhecidas e editadas escritoras infantis e juvenis portugueses.
Alguns dos seus livros tornaram-se já clássicos de leitura –«Rosa, Minha Irmã
Rosa», «Este Rei que eu Escolhi», «Os Olhos de Ana Marta». Existe nela, e vão
percebê-lo nesta entrevista, um airoso despacho de expectativas e lugares
comuns e uma veemente afirmação do gosto pela leitura. Faz-se acompanhar das
palavras de Erico Veríssimo e dos seus poetas de eleição e - sempre ocupada
entre novas edições, a divulgação junto a escolas, e novos projectos de
escrita - divaga apenas quando se lembra das horas de sono que a Bela Adormecida de lhe leva de
avanço... Não parece contudo ter vontade alguma de parar. Há aqui um singular
entranhado de palavras e vida, fugas e encontros, força e solidão. Com mais
dezenas de títulos editados entre o romance, a poesia, o conto e o teatro,
distinguida com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para
Crianças, e fazendo parta da lista de honra do IBBY (International Board on
Books for Young People), Alice Vieira aceitou
falar um pouco de si.
Círculo de Leitores (CL) - Também se cresce (e vence medos) lendo?
Alice Vieira (AV) - Os livros foram a
minha tábua de salvação numa infância complicada. Foi com eles e através
deles que aprendi a viver, a arranjar maneiras de enganar os medos,
a angústia, o sobressalto. Todas as horas boas da minha infância a eles
as devo. Ensinaram-me a não desesperar, e sobretudo a encontrar forças
em mim própria, a nunca esperar nada dos outros e tudo de mim. Foi uma lição
para a vida inteira.
CL - Existe uma personagem que a aterrorize ainda hoje?
AV - Não me lembro de ter
medo de alguém ou de alguma personagem. Lembro-me de ter medo dos barulhos do
corredor da casa onde vivia, que era enorme e rangia quando as tias andavam
para lá e para cá, de madrugada, a ver se as insónias passavam. E tinha
pesadelos, imaginando que uma mão vinha de debaixo da cama para me agarrar.
CL - Se tivesse de atravessar uma floresta negra, sozinha, de quem se
faria acompanhar?
AV – Se calhar era poético
responder: “de uma fada que, com a varinha de condão resolvesse todos os
problemas”. Mas, terra a terra como sou e sempre fui, preferia a companhia de
um guarda-florestal conhecedor do sítio... (Já agora, loiro, de olhos azuis,
e do Benfica...)
CL - A Alice marcou já tanto o imaginário de todos nós. Queria contudo
perguntar-lhe de que forma a marca a si a escrita?
AV - A minha escrita foi
sempre a minha profissão. Nunca tive outra. Para além disso foi sempre a
minha maneira de contactar com os outros. Desde muito cedo. É uma ligação
muito pragmática: precisava das palavras escritas para sair donde
estava e atingir quem eu queria e estava longe. Lembro-me de ter
sempre escrito muitas cartas. Quando era criança fascinavam-me os actores de
teatro, que as minhas tias me levavam a ver ao Teatro Nacional. E depois
escrevia-lhes. E eles respondiam-me! Percebi muito cedo que seria pela
escrita que eu iria "fugir".
CL - Podia falar-nos um pouco do seu percurso enquanto leitora?
AV - Nunca me lembro de
não ter um livro nas mãos. Aprendi a ler e a escrever muito cedo e sozinha.
Lia tudo o que encontrava. Chorava com aqueles dramalhões da Colecção Azul
que as minhas tias liam. Muito mais tarde, com o andar dos tempos, comecei a
aprender a ser selectiva, mas em miúda lia tudo e acho que foram os livros
maus que eu li que me deram o gosto pela leitura: a vontade de ler mais, e
mais... Lembro-me de ler e reler, e rerereler "A Princesinha", da
Frances Burnett, e de nunca esquecer o que me ensinou Sarah, a menina rica
que ficava muito pobre - "mesmo em tempo
de grande angústia nunca se deve perder a dignidade e o requinte". Mas o
grande autor da minha infância, da minha adolescência, da minha juventude foi
Erico Veríssimo. Na minha mesa de trabalho tenho uma grande fotografia dele,
e tenho outra, mais pequena, que anda sempre na minha carteira junto das
fotografias dos homens da minha vida... Hoje sou uma leitora compulsiva, não
sigo nenhuma linha rígida de apetências literárias, é o que me apetece no
momento. Leio muita
Poesia. Sempre. Sempre à cabeceira (ou na mala, quando viajo) o meu trio
inseparável: Ruy Belo, Tolentino Mendonça, Daniel Faria.
CL - São prazeres distintos: o de ler, e o de escrever?
AV - A leitura é um prazer
enorme. A escrita é um prazer muito doloroso, muito complicado, muito
tempestuoso... Não tenho a escrita fácil, emendo imenso, deito fora livros já
prontos se tenho a mínima suspeita de que sou capaz de fazer melhor. Não é
uma paixão tranquila (se é que há paixões tranquilas...). Mas preciso dos
dois prazeres para me sentir viva.
CL - A Alice Vieira tem-se também dedicado a uma recolha de conto
tradicional português. Como tem sido essa experiência?
AV - É outro tipo de
trabalho, outro tipo de escrita, outro tipo de linguagem e de ritmo. A
literatura tradicional-- que, como se sabe, não é especialmente dirigida a
crianças - interessa-me muito por aquilo que nos ensina de nós próprios, dos
nossos medos, das nossas angústias, e também pelo que nos dá de outras gentes
e civilizações.
CL – O conto
tradicional parece guardar uma voz misteriosa...
AV - É a voz dos que
tentaram entender a alma humana , e os mistérios da natureza, e a relação com
o divino, e os obstáculos necessários à obtenção da felicidade - que é sempre
aquilo a que se quer chegar.
CL - Falo do conto tradicional, mas a Alice Vieira é conhecida pela
proximidade que mantém com o universo infantil e juvenil. Como mantém essa
frescura e proximidade?
AV - Se calhar porque me
sinto adulta, porque falo com eles como adulta que sou, e porque não faço
nada de propósito para lhes agradar. De resto, quando escrevo sou
terrivelmente egoísta: só penso em mim e se gosto do que estou a escrever, e
se aquilo me dá prazer.
CL - O que gosta de fazer que não envolva ler nem escrever?
AV - Gosto de não fazer
nada. Gosto de namorar. Gosto de almoçar com as minhas amigas. Gosto de ir às
compras com a minha neta mais velha e de brincar com os mais novos. Gosto de
ir ao ginásio. Gosto de estar nas esplanadas dos cafés. Gosto de ir ao fim da
tarde aos concertos da Gulbenkian.
CL - Permita-me agora um desafio. Se pudesse saltar para dentro de uma
história e alterá-la, em que história gostava de cair assim de supetão?
AV - Cansada como ando,
adorava cair no conto da Bela Adormecida. O que ia alterar?
Bom, talvez não dormisse cem anos. Mas cem dias de sono garanto que ninguém
me tirava!
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in revista Círculo de Leitores, nº185
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